sábado, 31 de março de 2012

Anúncio de Viver - Carlos Drummond de Andrade



Preciso anunciar em janeiro, fevereiro e março, a exemplo das grandes empresas. Anunciar o quê, se não sou sequer uma pequena empresa?
     Nada. Mas anunciar assim mesmo. Por exemplo, que estou vivo. Muito importante, a declaração da vida. Mais importante que a declaração de bens, por ser a vida um bem maior do que a totalidade de bens que se possam acumular durante a vida.
Mais importante que a declaração de renda, que interessa mais ao Fisco do que a mim. Antes de me cobrar, o Fisco precisa saber se continuo no exercício de viver, pois do contrário não adiantaria cobrar-me. E de que maneira saber se estou vivo, se não saber se não anuncio minha vida, como fazem os automóveis novos e os automóveis usados, os refrigerantes, os detergentes, os espetáculos, as persianas, as cidades turísticas, os planos de desenvolvimento, os cartões de crédito, os cursos de kung-fu, os detetives particulares, os compradores de ouro velho, as viúvas de 35 anos e fina educação, que desejam conhecer cavalheiro de boas maneiras e situação econômica estável para fins de amizade, os tapetes persas e semipersas, os curinhos, os cursilhos, o leite em pó, o papel higiênico, as Letras do Tesouro, os terroristas – é, os terroristas também, anunciando que vão seqüestrar, lançar bomba, fazer explodir o avião?
     Nem me digam que o rol está errado, pois as pessoas anunciam, os objetos não; o fabricante deles é que. Perdão, o objeto do anúncio que vale, seja ele pessoa, serviço ou objeto mesmo. Não compro o industrial produtor de detergente, mas este me invade a casa, apregoando suas sublimidades, mal comprimo o botão da TV. E é ele, o detergente que eu vejo, que experimento ou não experimento, mas cuja presença física se impõem, na imagem do vídeo. Assumo com ele relação direta, ocupa espaço em meu di, vive em meu viver, pelo anúncio. Não distingo pois entre anúncio-gente e anúncio-coisa. E não serei eu também coisa, entre coisas, todas necessitando documentar suas vidas coisais?
     Então não deixarei de anunciar-me em janeirofevereiromarço. Embolo os meses para tornar mais compacto o ano e, com ele, minha existência. Informarei a todos que tomo café pela manhã. Muito importante, tomar café pela manhã. Nem todos o fazem, não porque falte café, mas porque falta dinheiro para tomá-lo. O pão anda muito branco e sem gosto de pão, até sem forma de pão, aquele bico torradinho que dá tanto gosto trincar? Passarei a consumir acompanhamento mais sofisticado para o café da manhã. Meu status autoriza este privilégio. Lamento que outros patrícios não possam anunciar a mesma coisa.
     Vou anunciar as sucessivas operações e fases do meu dia, que pode não ser o mais original do mundo – mas será necessário que os anúncios se mostrem sempre originais na essência, desde que o sejam razoavelmente na forma? Usarei meios originais para anunciar, por exemplo, que ando na rua. Muitos colegas ainda praticam este ato, na medida do possível. Chamarei a atenção para esta circunstância incomum: só ando nas calçadas do lado ímpar. Deixo as calçadas pares à multidão. A imparidade, já celebrada pelo poeta francês, dará a meu anúncio aquele toque de classe que me distinguirá dos demais anunciantes, pois eles costumam andar tanto do lado ímpar como do lado par, os vulgares.
     Ao anunciar-me, gratifico-me: vivo e provo estar vivendo. O chuveiro fechado está pingando: é a maneira de anunciar que ele também existe. Procuro o bombeiro que se anuncia com o letreiro da bicicleta à porta do botequim, e ele anuncia que cobra 50 cruzeiros pelo serviço. Pago e vingo-me anunciando-lhe que seu Imposto sobre Serviços aumentou 25%. Ele se vinga de minha vingança lembrando-me que meu Predial aumentou 55%. Tudo é anúncio, bom ou mau, geralmente mau.
     Anunciemos. Que remédio!

Extraído de: Os dias lindos - crônicas.


Vidente o Drummond! Nem sei porque isso me lembra o Facebook...rsrsrsrs

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